
TEXTO EM PORTUGUES
NOSTALGIA
Por mais voltas que demos, há algo em nós que sempre quer voltar atrás. Não necessariamente a um lugar, mas a um tempo. Um momento que lembramos como mais simples, mais quente, mais pleno. Um dia qualquer que, ao olhar do presente, parece ter tido sentido. Não importa se foi há cinco ou vinte anos, se aconteceu numa cidade, no campo ou num corredor de escola. O que importa é a sensação, a ideia de que lá, naquele canto do passado, éramos melhores, ou pelo menos, mais felizes.
A essa sensação chamamos nostalgia. E a carregamos como se fosse um casaco, um que usamos quando o presente nos parece frio. Muitas vezes decidimos ir além da lembrança e tentamos voltar fisicamente a esse passado: buscamos aquela pessoa que foi importante, reunimo-nos com velhos amigos, regressamos à cidade onde crescemos, reouvimos uma canção ou relemos um livro que nos marcou. E então acontece algo estranho: não é a mesma coisa. O clima já não é o mesmo, as conversas não fluem como antes, as emoções não se acendem. Algo não encaixa. E isso desconcentra.
Quando recordamos algo com carinho, não estamos vendo-o como realmente foi. Estamos vendo-o como precisamos que ele seja agora. A memória não é uma câmera fotográfica que captura a realidade tal como aconteceu. É mais um editor que seleciona, melhora e ajusta. As lembranças são construídas cada vez que são evocadas, e nessa construção intervêm as emoções do presente, as necessidades do momento e as expectativas do futuro. Por isso, quando voltamos a algo que lembramos como perfeito, a realidade sempre decepciona.
O presente está cheio de detalhes que nos incomodam, de muitas coisas que não entendemos, de silêncios que doem. Quando tentamos reviver o passado, fazemo-lo a partir de um presente que já mudou, e nós com ele. Por isso, mesmo que consigamos repetir o cenário, a experiência não é a mesma porque já não somos os mesmos.
Há outro aspecto que muitas vezes não consideramos: achamos que os outros ficaram congelados na nossa memória. Mas eles também mudaram. A pessoa com quem compartilhamos uma história já viveu outras. Teve medos novos, erros diferentes, feridas que nós não vimos. Reencontramo-nos com alguém esperando recuperar aquela versão dela que recordamos com carinho, mas encontramos uma que tem outro olhar, outras prioridades, outra maneira de estar no mundo. O mesmo acontece com eles em relação a nós. Ninguém está intacto.
Um dos grandes mal-entendidos é achar que voltar é o mesmo que repetir. Que uma reunião de velhos amigos pode fazer reviver aqueles dias como se nada tivesse acontecido. Que retomar um relacionamento do passado pode nos fazer sentir completos novamente. Que visitar a casa onde crescemos pode nos devolver a segurança da infância. Mas a vida não é uma fita que se rebobina. Cada tentativa de voltar é também uma forma de comprovar que o tempo fez seu trabalho.
Os fantasmas de ontem
Essa saudade vai assumindo um papel importante nas nossas escolhas: as pessoas com quem nos relacionamos, os lugares para onde queremos ir, os trabalhos que aceitamos ou recusamos.
Muitos voltam a um antigo amor na esperança de recuperar o que um dia os fez felizes. Mas quando retomam o vínculo, descobrem que não há nada parecido com o que lembram. Não é que tudo tenha piorado. É que eles também já não são os mesmos. A pessoa que esteve naquela lembrança já não existe, assim como nós já não caminhamos, pensamos ou nos encantamos com a mesma facilidade.
Isso também se vê nas decisões profissionais. Há quem passe anos procurando um trabalho que lhes devolva “aquela paixão que sentiam no início”, ou aquela sensação de pertencimento que acreditam ter tido em outro lugar. Mas o que buscam já não está lá, ou pelo menos não da mesma forma. A indústria mudou, o ambiente é outro, e eles também. O que era emocionante aos vinte e cinco pode ser exaustivo aos quarenta. Ainda assim, a mente insiste em repetir, porque se funcionou uma vez, deve funcionar de novo.
Os vínculos idealizados de outrora
Lembramos a infância como uma época de brincadeiras livres e afetos sinceros, mas raramente lembramos a pressão, o medo da rejeição ou o sentimento de não pertencer. Falamos dos laços familiares com solenidade, embora muitos tenham sido marcados por silêncios, regras rígidas ou expectativas que não podiam ser questionadas. O que fica é um postal: avós amorosos, conversas longas, portas abertas. E esquecemos que muitas vezes essas cenas também vinham acompanhadas de conflitos sem solução.
Agora, quando alguém se sente desconectado, dizem-lhe que as redes sociais são a causa. Que os vínculos se enfraqueceram porque ninguém mais se olha nos olhos. Que o telefone substituiu o abraço. Mas o isolamento não começou com a tecnologia. O digital pode amplificá-lo, sim, mas não o inventou. O problema vem de antes.
A comercialização do passado
De tempos em tempos, ressurgem filmes, músicas ou séries que foram lançados décadas atrás. São relançados, reciclados, reescritos com os mesmos personagens e uma promessa repetida: “vamos fazer você se sentir como antes”. O mesmo acontece com modas, videogames, slogans dos anos oitenta ou noventa que voltam com roupas diferentes. Não há criatividade nisso, há cálculo. Porque a lembrança positiva vende mais que o novo. Porque sabem que a maioria das pessoas quer reviver o que sentiu quando tinha menos preocupações e mais energia.
Essa nostalgia fabricada acaba substituindo a memória real. As pessoas começam a lembrar a infância como se tivesse acontecido numa série de TV, com cores saturadas e conflitos resolvidos em trinta minutos. E quando comparam essa versão editada com os problemas do presente, obviamente o presente perde.
Há outra indústria que se tornou especialista em administrar frustrações: a do bem-estar, do desenvolvimento pessoal, do “reencontro consigo mesmo”. Recuperar a energia e o vigor dos vinte anos, a cintura dos trinta, uma pele fresca. Busca-se reparar mais que reconstruir, como se o tempo por si só fosse um defeito. E nessa busca por “ser quem éramos”, aceitamos rotinas, dietas, gurus, programas de transformação que não partem de uma necessidade real, mas de uma imagem feita de fragmentos de memória seletiva e mensagens publicitários.
Juventude eterna
Envelhecer tornou-se uma espécie de fracasso pessoal. Não só fisicamente, mas mentalmente, culturalmente, socialmente. Espera-se que as pessoas mantenham para sempre a energia, a curiosidade e os interesses dos vinte anos.
Essa pressão pela juventude eterna parece um mandato cultural que atravessa todos os aspectos da vida. No trabalho, valoriza-se mais a “mente fresca” que a experiência. Na tecnologia, considera-se obsoleto tudo que tenha mais de dois anos. Nos relacionamentos, busca-se a espontaneidade e a paixão dos primeiros encontros.
Não importa a idade que tenham, sempre sentem que seus melhores anos ficaram para trás. E em vez de encontrar valor no que cada fase da vida traz, dedicam-se a tentar recuperar o que já não podem ter. Culturas tradicionais sabiam que cada etapa tem seu ritmo, suas perdas e seus ganhos. Que a juventude não é o auge, mas parte do caminho. Mas numa sociedade obcecada por se manter jovem, render ao máximo e acumular experiências memoráveis, qualquer mudança é vista como perda.
Países ancorados no passado
Não há nação que não tenha algum relato fundacional carregado de orgulho. Cada sociedade escolhe um momento de sua história para exibi-lo como se fosse seu ponto mais alto. Fabricam-se mitos. Erguem-se estátuas. Ensinam-se versões simplificadas nas escolas.
Mas esses anos tão admirados não foram tão justos nem tão estáveis. Tinham conflitos, desigualdades, abusos, decisões arbitrárias. O que acontece é que a memória oficial costuma ser seletiva. Corta o incômodo, destaca o conveniente e repete o resto até que se torne crível. Daí nascem as grandes frases patrióticas, os hinos, as comemorações. Não são mentiras completas, mas relatos incompletos.
E assim, em vez de olhar para frente, muitas sociedades começam a girar em círculos, tentando reviver um modelo que já não corresponde à sua realidade atual. No fundo, o que acontece com as pessoas também acontece com as culturas. Por isso agarram-se ao passado. Mas uma nação que não quer mudar acaba fossilizando-se. Perde o ritmo do mundo. Reage tarde. Decide mal. E quando tenta corrigir o rumo, já há outras à frente, porque é mais fácil vender uma glória passada que construir uma convicção futura.
Filhos de um passado alheio
Em casa, nas escolas, nas redes sociais, há uma repetição constante de referências passadas. Filmes dos anos oitenta, músicas dos noventa, roupas “retrô”, videogames remasterizados, lemas políticos reciclados, programas escolares que permanecem intactos há décadas. Os adultos apresentam esse material como um tesouro cultural. Fazem-no com orgulho. Recomendam-no. Impõem-no. E ao fazê-lo, muitas vezes não percebem a mensagem que transmitem: o presente não tem nada próprio que valha a pena.
A idealização do passado não se limita às lembranças de uma conversa de família. Reproduz-se em plataformas que têm os jovens como principais usuários. Há contas inteiras dedicadas a exaltar épocas que os próprios jovens não viveram. Eles consomem-nas como se fizessem parte de sua identidade. E em muitos casos acabam convencidos de que seu presente não está à altura.
A mensagem para eles é que nasceram tarde. Que carregam a pressão de parecer felizes, competentes, produtivos, mesmo que por dentro tenham a sensação de que chegaram a um mundo que já teve seu momento glorioso. Isso faz com que se sintam desorientados ou obrigados a adaptar-se a padrões que não construíram.
A maioria dos sistemas educativos ainda se concentra em repetir conteúdos, não em entender contextos. Ensina-se história como uma cronologia, não como um conjunto de decisões humanas com consequências. Mostram-se obras literárias sem explicar por que ainda são relevantes. Repetem-se datas, autores. Não se forma uma mentalidade crítica, mas uma capacidade de memorizar o que outros já pensaram.
O arquivo digital
Há trinta anos, para lembrar algo, era preciso procurar uma foto numa caixa, achar uma carta guardada, ligar para um amigo para confirmar um detalhe. Agora, o passado aparece sem ser chamado. O Facebook lembra o que foi feito há cinco anos, o Instagram mostra fotos da mesma data de anos anteriores, o YouTube sugere vídeos vistos há uma década.
Mas além disso, esse arquivo permanente cria uma versão de cada pessoa que nunca envelhece. Nas redes sociais, convivem a foto de dez anos atrás com a de ontem, os comentários da adolescência com as opiniões da vida adulta. O arquivo digital também alimenta a ilusão de que o passado está disponível para ser recuperado. Que basta procurar no telefone para reviver um momento. Mas o que se encontra não é o momento, e sim sua representação. Não é a experiência, mas sua marca. E confundir a marca com a experiência é outra forma de ficar preso na nostalgia.
O passado que se infiltra nas palavras
O vocabulário cotidiano está cheio de referências que dão como certo que o melhor já passou. “Tempos passados eram melhores”, “voltar a ser o que fomos”, “recuperar os valores perdidos”, “como nos velhos tempos”, “quando tudo era mais simples”. Não são apenas frases feitas: são ideias que se instalam como verdades sem precisar ser discutidas.
Esse tipo de expressão circula na rua, nos meios de comunicação, nos discursos institucionais. Molda a forma como entendemos os problemas atuais. Quando algo não funciona, a solução imediata é olhar para trás. Citam-se normas antigas, práticas familiares, exemplos de outros tempos. Assume-se que o novo tem menos valor porque não foi “testado”. Como se a antiguidade garantisse automaticamente sabedoria.
O mesmo acontece com os símbolos. Bandeiras, hinos, imagens religiosas, estilos de criação, modelos de relacionamento, rituais sociais… tudo parece sujeito a uma lógica de conservação. Não porque esses símbolos ainda cumpram sua função, mas porque se tornaram âncoras emocionais. E quando alguém os questiona, não se discute o conteúdo, acusa-se a pessoa de querer romper com “o que nos une”. Mas muitas vezes essa união não passa de um hábito que ninguém se atreveu a revisar.
As referências culturais e linguísticas disponíveis quase sempre apontam para trás. O futuro aparece como um lugar borrado, cheio de riscos, sem narrativas convincentes. No melhor dos casos, descreve-se como uma extensão do presente. No pior, como uma ameaça inevitável. E assim, entre o conhecido que não se quer largar e o desconhecido que assusta, produz-se uma paralisia.
Aprender a ficar
O presente tem má reputação. Parece insuficiente. Não tem épica. Não tem explicação fácil. Não traz garantias. Não seduz como o passado nem promete como o futuro. É incômodo porque não se pode controlar. Não há tempo para editá-lo. É preciso enfrentá-lo como é.
Por isso, voltamos ao que já vivemos e o idealizamos. Projetamo-nos no que desejamos e fantasiamos. E assim, o único real, o agora, fica sem ser totalmente usado. Não o observamos, não o compreendemos, não o habitamos por completo. Torna-se uma sala de espera entre dois tempos que já não existem ou que ainda não chegaram.
A vida não acontece na lembrança nem na antecipação. Acontece neste fragmento exato, que já passou enquanto esta linha era lida. E embora pareça pouco, é tudo o que existe. E nesse tudo, mínimo, despercebido, cotidiano, está o que muitas vezes se busca lá fora: clareza, sentido, direção. O que se precisa não é de mais memória, mas de mais consciência. Não para viver alerta, mas para não viver distraído.
“A conexão que desconecta”
A expansão acelerada do acesso à internet em regiões rurais e remotas é uma promessa recorrente nos planos de desenvolvimento nacional, envolta na linguagem sedutora da conectividade e do progresso. É celebrada como um ato de justiça tecnológica: levar o mundo para aqueles que supostamente ficaram para trás. Mas conectar-se é sempre sinônimo de avançar?
A conectividade é apresentada como uma panaceia: acesso ilimitado à informação, democratização do saber, ferramentas educativas, monitoramento de saúde, inclusão financeira, participação política. Nessa perspectiva, quando falamos de “inclusão digital”, partimos de um pressuposto: estar desconectado equivale a estar excluído. Essa premissa privilegia um único modelo de conhecimento e progresso.
As comunidades tradicionais não estavam “desconectadas” antes da chegada da internet; estavam conectadas de outra forma, através de redes de reciprocidade, transmissão oral e vínculos territoriais que a modernidade em grande parte perdeu.
Quando essas comunidades ingressam no espaço digital, não o fazem a partir da neutralidade. Entram em um ambiente saturado de representações dominantes, onde o algoritmo se torna um guia de comportamento. A cada clique, são direcionadas para modelos aspiracionais centrados no consumo, lógicas de sucesso mediadas e uma temporalidade marcada pela urgência, não pela permanência.
Em poucos cliques, o enraizamento pode se transformar em desejo de migração. O jovem agricultor que antes aspirava a guardar o saber da terra agora sonha em ser youtuber ou influencer. A mulher que transmitia cantos ancestrais descobre que sua voz não “rende” nas métricas do algoritmo. Não é que o conhecimento ancestral desapareça de repente, mas torna-se irrelevante na nova hierarquia do visível.
A conectividade, sem acompanhamento cultural e comunitário, pode se tornar uma forma de despossessão simbólica. Já não se trata apenas de extrair recursos do solo, mas também significados da alma coletiva.
Em Koonibba, uma comunidade aborígene australiana, a chegada do satélite Sky Muster multiplicou o tempo que os jovens passavam conectados. Houve conquistas: acesso a plataformas educativas, intercâmbio com outros povos. Mas também ocorreu um curto-circuito cultural. As línguas locais começaram a desaparecer do cotidiano. As histórias orais, antes transmitidas em círculos intergeracionais, foram substituídas por tutoriais e conteúdos globais. O espaço comunitário deu lugar à solidão da tela. O pertencimento, à comparação.
Ao acessar a “vitrine global” da internet, os jovens aborígenes consomem conteúdos, mas também modos de vida, sistemas de valores e aspirações que vão contra sua herança cultural.
No Nepal, o projeto Nepal Wireless conectou dezenas de aldeias remotas, facilitando a telemedicina e a educação agrícola. Ainda assim, alguns idosos, que antes percorriam longas distâncias a pé para levar notícias e compartilhar saberes, hoje se veem substituídos por mensagens instantâneas que informam, mas já não escutam.
Em nome do progresso, não estaremos empurrando comunidades inteiras a trocar sua autonomia por sistemas projetados para distrair, polarizar e monetizar a atenção? As redes prometem liberdade, mas muitas vezes operam como mecanismos de extração de tempo, desejo e pensamento crítico. Não se trata de se opor ao acesso (isso seria cair em uma romantização perigosa do isolamento), mas de perguntar: acesso a quê? Sob quais condições? Com quais horizontes?
Andrew Feenberg propõe o conceito de “democratização tecnológica”: a ideia de que as comunidades devem ter a capacidade não só de acessar a tecnologia, mas de configurá-la segundo seus próprios valores e necessidades.
Isso implicaria:
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Reconhecer que o desenvolvimento tecnológico pode ser direcionado conscientemente para fins específicos. As comunidades poderiam priorizar aplicativos que fortaleçam suas economias locais e sistemas de conhecimento tradicional.
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Associar o acesso formal à tecnologia com a capacidade real de usá-la de modo a ampliar as opções de vida sem comprometer a autonomia cultural.
No entanto, nas sociedades hiperconectadas, a capacidade de se desconectar tornou-se um luxo acessível principalmente para elites urbanas instruídas, que podem se permitir “férias digitais” ou “detox tecnológicos”. Enquanto isso, comunidades tradicionalmente desconectadas são pressionadas a se conectar sob a retórica do desenvolvimento e da inclusão.
A tecnologia não é em si mesma emancipatória ou opressiva — é uma ferramenta carregada de decisões políticas, éticas e culturais. Seu impacto depende menos de sua presença do que de sua apropriação. Não basta instalar um satélite para falar em desenvolvimento. É preciso imaginar formas de conectividade que não desarticulem o comunitário, nem silenciem os ritmos próprios de cada cultura.
O desenvolvimento talvez consista em preservar e fortalecer a diversidade de formas de vida e conhecimento. Talvez tenhamos esquecido que, em certos contextos, a desconexão não é carência, mas forma de cuidado. Nem toda solidão é isolamento, nem todo silêncio é ignorância. Não se trata de inserir mais telas, mas de proteger os espaços onde ainda é possível olhar nos olhos, escutar sem pressa, narrar sem algoritmo.
Só assim poderemos falar verdadeiramente de desenvolvimento: como a expansão das possibilidades de florescimento humano em toda a sua diversidade.
MALES SEM NOME E ROSTO COTIDIANO
MALES SEM NOME E ROSTO COTIDIANO
Palavras como depressão, ansiedade ou estresse são usadas com tanta frequência que começaram a perder precisão. Às vezes parecem explicar tudo — e, ao mesmo tempo, não esclarecem nada. Muitas pessoas vivem mal-estares que não se encaixam totalmente nessas categorias.
Aqui, retomo ideias de autores como Erich Fromm, Jacques Lacan, Byung-Chul Han, Peter Sloterdijk, Yuk Hui e outros pensadores que tentaram nomear alguns dos desconfortos que permeiam nossa vida cotidiana. A partir de disciplinas como psicanálise, psicologia crítica, filosofia humanista, neurociência e antropologia, proponho uma abordagem que não separa a pessoa do ambiente em que vive, nem o pensamento da experiência diária. O que sentimos, pensamos ou sofremos tem uma história, uma estrutura e um contexto. Somos resultado de vínculos, de sistemas de significado, de formas de vida que nos afetam — mesmo quando não sabemos como nomeá-las.
O que não é nomeado fica fora da linguagem, e o que fica fora da linguagem dificilmente pode ser compreendido, compartilhado ou transformado. Enquanto algo não tem nome, permanece confuso, disperso — e muitas vezes é vivido como uma falha pessoal.
Quem não sentir vertigem ao ler o que segue já está completamente adaptado. E isso, caro leitor, deveria assustá-lo mais do que qualquer mal-estar.
A Fadiga do Eu Otimizado: Síndrome da Insuficiência Existencial
Hoje, temos uma quantidade esmagadora de recursos para nos entender melhor, nos desenvolver e alcançar o que se espera de nós. Mesmo assim, a sensação de estar falhando, de não se tornar quem deveria, tornou-se cada vez mais comum. O crescimento da autoajuda, dos métodos de desenvolvimento pessoal e das tecnologias focadas no “eu” trouxe uma forma diferente de desorientação — mais do que de clareza.
Muitas pessoas vivem medindo seu valor diante de uma imagem ideal fabricada pela cultura: alguém eficiente, criativo, sempre no controle de seu bem-estar. Essa distância permanente entre o que se alcança e o que se espera gera um tipo de cansaço que se instala no cotidiano, como uma corrida sem pausa atrás de um objetivo sempre fora de alcance.
A insuficiência existencial se manifesta em comportamentos aparentemente contraditórios: uma mistura de hiperatividade e desânimo, ambição desmedida junto a uma sensação de vazio, entusiasmo por tudo relacionado ao desenvolvimento pessoal e, ao mesmo tempo, uma rejeição constante a olhar para dentro. A pessoa sente que precisa se superar sem descanso para estar em paz consigo mesma, mas cada avanço mostra novas razões para se sentir incompleta.
Desorientação Referencial Difusa
Jacques Lacan propôs que a linguagem é o meio pelo qual nos formamos como pessoas. Mas quando as referências simbólicas que organizavam o sentido da vida começam a perder força, essa formação se torna instável.
O que antes oferecia uma orientação clara — como a família, a religião, o pertencimento social ou as ideias políticas — deixou de ocupar esse lugar central. Já não há um ponto firme a partir do qual interpretar a própria experiência, e muitos atravessam a vida com a sensação de que nada permanece.
Essa sensação não leva necessariamente a um transtorno mental grave, mas sim a uma forma persistente de estranhamento diante do mundo. Tudo parece possível, mas, ao mesmo tempo, nada parece realmente importar. A liberdade se torna um peso: muitas opções, nenhuma certeza. As referências perdem consistência, os valores mudam conforme o momento, e a identidade se constrói como uma sequência de versões adaptáveis ao entorno.
As redes sociais intensificam esse estado. Expostos constantemente a discursos opostos, mudanças súbitas de opinião e consensos passageiros, surge uma sensação de presente fragmentado e difícil de assimilar. O ritmo se acelera, as certezas se enfraquecem, e o que antes ajudava a entender a realidade já não basta para dar direção ou estabilidade.
Saturação Empatia
Vivemos hiperexpostos aos males do mundo, próximos e distantes. Nesse contexto, surge uma forma de esgotamento causado pelo excesso de estímulos emocionais. O chamado Síndrome da Saturação Empatia descreve a fadiga de quem se sente constantemente convocado a responder ao sofrimento alheio.
A mídia digital nos conecta simultaneamente a eventos dolorosos em múltiplas escalas: conflitos bélicos, catástrofes ambientais, injustiças sociais, além das crises pessoais que circulam em nossos círculos próximos. O fluxo constante dessas narrativas ultrapassa a capacidade emocional com a qual, durante séculos, as pessoas respondiam às dores daqueles que tinham por perto.
Quem vive isso não deixou de sentir, mas atingiu um limite. A sobrecarga afetiva ativa uma espécie de desconexão parcial, que permite seguir com as tarefas do dia a dia — mas com um pano de fundo de culpa e frustração. Surge então a sensação de estar insensível sem ter deixado de se importar, exausto de cuidar sem ter deixado de querer.
Manter relações significativas com a mesma intensidade torna-se difícil. A conexão emocional se enfraquece diante da necessidade interna de preservar energia psíquica em uma realidade que não dá trégua.
Substituição Digital da Experiência
A experiência direta é deslocada por seu formato digital. O chamado Síndrome da Substituição Digital da Experiência: o que antes era vivido presencialmente agora é registrado e publicado.
A vida cotidiana começa a se organizar em função de sua projeção pública. Um passeio, uma refeição, uma emoção deixam de ser vividos pelo que provocam e passam a ser medidos por seu potencial de gerar conteúdo. O valor já não está no que se sente, mas no que pode ser compartilhado.
A memória se fragmenta e se armazena em arquivos externos. A atenção se dispersa em múltiplas frentes. A concentração enfraquece pela ausência de continuidade. Mas o efeito mais duradouro aparece quando a percepção de si mesmo fica mediada pelas expectativas alheias: age-se pensando em como será visto, não no que realmente se precisa ou deseja.
Nesse deslocamento, perde-se o contato com a própria interioridade. Cada situação parece condicionada à sua exposição. A intimidade recua, e o que antes era resguardado agora circula sob a lógica da visibilidade constante.
A Paralisia da Hiperindividualização: Síndrome da Sobrecarga Decisória
O Síndrome da Sobrecarga Decisória descreve o esgotamento causado pela obrigação constante de escolher em um mundo onde todas as opções parecem igualmente válidas — e igualmente insatisfatórias.
Cada aspecto da vida — formação, relacionamentos, modo de habitar o corpo, crenças, até mesmo as emoções — parece depender de uma decisão pessoal que precisa ser justificada repetidamente. Não basta escolher: é preciso explicar, defender, sustentar as escolhas diante dos outros e de si mesmo.
A carga não está em decidir, mas na exigência permanente de ter escolhido bem. A responsabilidade recai sobre cada indivíduo isolado, que se torna juiz e réu de seu próprio itinerário vital. Essa pressão nem sempre se traduz em ação — muitas vezes, gera paralisia. Diante de tantas opções, todo caminho parece insuficiente.
Desvinculação Transgeracional Crônica
Muitas pessoas hoje sentem que não pertencem totalmente ao lugar onde vivem, mesmo que nunca tenham se mudado. A isso se deu um nome: Síndrome da Desvinculação Transgeracional Crônica. Trata-se de uma sensação de estranhamento herdado, como se estivessem em sua terra, mas não conseguissem torná-la própria.
Isso não ocorre apenas por mudanças geográficas. Nas últimas gerações, muitas famílias abandonaram formas tradicionais de vida — ofícios, costumes, maneiras de habitar o mundo. Essas perdas nem sempre foram verbalizadas ou compreendidas. O que resta é um vazio difícil de explicar, que passa de uma geração a outra como uma espécie de desconexão.
Quem vive isso pode sentir que não se encaixa em lugar nenhum. O que os pais ou avós valorizavam já não faz sentido para eles, e o novo também não lhes parece próximo. A família não oferece direção clara, o entorno parece alheio, e as raízes se sentem frágeis ou cortadas. Isso gera uma tristeza difícil de nomear — porque não há algo concreto que tenha sido perdido. É antes uma sensação de falta: algo que nunca se teve, mas cuja ausência pesa.
Essa desvinculação afeta a forma como alguém se relaciona com os outros, com sua história e com seu presente. Não saber de onde se vem pode dificultar também saber para onde se quer ir.
Síndrome da Obsolescência Educacional
Muitos sentem hoje que sua educação não os preparou para os desafios do presente. Passaram anos estudando, superando exames e aprendendo conteúdos, mas agora enfrentam um mundo que exige habilidades completamente diferentes. A isso se chamou Síndrome da Obsolescência Educacional Crônica. É uma forma de mal-estar que surge quando se percebe que, apesar de ter estudado muito, não se sabe bem como agir em situações reais.
O problema não está na falta de esforço. Pelo contrário: quem o vivenciou geralmente passou por muitos anos de educação formal. O que ocorre é que o que aprenderam já não é útil em muitos contextos. Ensinaram-lhes a repetir ideias, a resolver exercícios seguindo etapas fixas, a acumular dados. Mas hoje se precisa de algo diferente: pensar com flexibilidade, adaptar-se rápido, saber conectar temas diversos, encontrar sentido no meio do caos.
Somam-se a isso outro problema: estamos cercados de informação. O tempo todo chegam dados, opiniões, imagens, notícias. O cérebro não dá conta. Como defesa, começa a ignorar boa parte do que recebe. O resultado é que se perdem também coisas importantes. A atenção salta de um tema a outro, a memória falha, e é difícil manter uma ideia clara. Saber muito não garante entender melhor.
Essa síndrome revela uma desconexão entre o tipo de formação que recebemos e o que o presente realmente exige. E gera uma sensação difícil de carregar: sentir-se educado, mas pouco preparado; cheio de informação, mas sem clareza; com anos de estudo, mas sem confiança para agir.
Ativismo Performático Compensatório
Hoje, muitas pessoas sentem uma mistura de frustração e ansiedade diante das injustiças que veem todos os dias. Embora haja consciência dos problemas sociais, econômicos e ambientais, também há a sensação de que não existem caminhos claros para mudar as coisas de verdade. Isso dá origem a uma forma de mal-estar muito comum: a pressão constante por mostrar que se está “do lado certo” por meio de ações simbólicas, visíveis — mas sem efeitos concretos.
Quem vive isso sente que não está fazendo o suficiente, que poderia se envolver mais, ajudar mais, saber mais. No entanto, essa preocupação não se traduz em ações que modifiquem as estruturas que geram o problema. Em vez disso, recorre-se a expressões visíveis de engajamento (como publicações em redes sociais ou declarações públicas) que aliviam momentaneamente a culpa ou a impotência, mas não mudam as condições de fundo.
Esse tipo de ativismo funciona mais como alívio emocional do que como intervenção real. Não é que falte intenção, mas ele se torna uma forma de responder ao mal-estar sem enfrentá-lo em sua raiz. A ação simbólica (compartilhar, denunciar, reagir) dá a sensação de estar fazendo algo, mas muitas vezes só substitui a ação real. Assim, reforça-se um ciclo: quanto mais mal-estar, mais atos imediatos; quanto mais atos, menos profundidade. O compromisso se reduz a manter a imagem de coerência moral, sem alterar as condições que geram a injustiça.
Aceleração Temporal Desadaptativa
As mudanças sociais e tecnológicas avançam hoje a uma velocidade que supera a capacidade humana de assimilá-las. Não se trata apenas de aprender a usar novos dispositivos ou se adaptar a novos ambientes, mas da dificuldade de integrar essas mudanças na vida diária de forma estável.
Algumas pessoas desenvolvem um mal-estar específico diante dessa aceleração constante. É como se vivessem descompassadas: o mundo se move rápido demais, e elas não conseguem acompanhar. A esse descompasso se deu o nome, ilustrativo, de jet lag existencial.
Ontotecnologia, do ser à interface
Antes de sair de casa, uma inteligência artificial já selecionou as notícias que você verá, sugeriu uma rota “eficiente” para o seu destino, categorizou seu estado emocional a partir de suas pulsações e, sem consultá-lo, priorizou certos dados em detrimento de outros. Enquanto isso, suas escolhas futuras estão sendo treinadas por modelos preditivos. Isso não é ficção científica. É ontotecnologia.
A ontotecnologia é um conceito que nomeia a maneira como os sistemas técnicos reescrevem as condições básicas do que significa existir, sentir, decidir e se relacionar. Descreve o momento em que a tecnologia deixa de ser instrumental para se tornar “arquitetônica” — estrutura as próprias possibilidades do real.
Da ferramenta ao ambiente existencial
Tradicionalmente, as ferramentas ampliavam as capacidades humanas. Um martelo reforçava a força, um telescópio aguçava a visão, um livro preservava a memória. A ontotecnologia propõe uma situação diferente: sistemas que não prolongam nossas faculdades, mas “substituem, antecipam e reorganizam” essas funções segundo uma lógica própria.
Considere o funcionamento das plataformas de streaming. A Netflix não se limita a oferecer conteúdo; ela produz subjetividades específicas. Seu algoritmo “recomenda” filmes, mas também gera um espectador cuja capacidade de escolha foi delegada a um sistema que prevê desejos, minimiza a incerteza e transforma o tempo livre em consumo eficiente. O usuário já não escolhe o que assistir; habita um ecossistema que processou, filtrou e pré-selecionou as opções de sua experiência.
Quando o Google completa nossas buscas antes de terminarmos de digitá-las, ele modifica a relação com a curiosidade, com o inesperado, com a formulação do próprio pensamento. Quando o Spotify cria playlists automáticas baseadas em nosso “estado de ânimo”, produz uma forma de autorrelação em que os afetos se tornam dados interpretáveis.
A gramática subjacente
A ontotecnologia configura as possibilidades da experiência antes mesmo que tenhamos consciência de estar vivendo algo. Os sistemas de inteligência artificial são assistentes e arquitetos de contextos existenciais.
Tomemos o caso dos aplicativos de encontros. O Tinder facilita encontros românticos e, ao fazê-lo, configura uma forma particular de desejo e reconhecimento. A lógica do deslize (swipe) transforma o encontro amoroso em um processo de seleção binária baseado em imagens. O algoritmo aprende com nossos padrões de escolha e começa a pré-selecionar perfis, gerando um feedback que progressivamente estreita o leque do que consideramos desejável. O resultado produz subjetividades amorosas — indivíduos que aprendem a desejar dentro dos parâmetros dos algoritmos.
Os corretores automáticos de texto não apenas corrigem erros ortográficos, mas também normalizam formas de expressão, eliminam regionalismos e padronizam a linguagem. Cada sugestão funciona como uma microintervenção no pensamento. Os GPS indicam rotas e, ao mesmo tempo, reconfiguram a relação com o território, suprimindo a possibilidade do extravio como forma de descoberta.
Memória, atenção e julgamento terceirizados
A ontotecnologia se caracteriza pela externalização de funções que antes eram consideradas inerentemente humanas. Falamos de capacidades cognitivas e afetivas como lembrar, escolher, avaliar, imaginar.
Antes, fotografar implicava decisões conscientes: qual momento capturar, de qual ângulo, com qual propósito. Os smartphones automatizaram grande parte desse processo: ajuste automático de luz, foco, filtros que “melhoram” a imagem segundo padrões algorítmicos. O Google Fotos organiza automaticamente nossas memórias, cria álbuns temáticos, sugere quais momentos compartilhar. A memória pessoal se torna um serviço administrado por inteligência artificial.
Quando externalizamos a gestão da memória em sistemas automatizados, modificamos a relação com o passado, com a temporalidade, com a construção narrativa da identidade. Os algoritmos de classificação priorizam certos tipos de eventos (celebrações, viagens, momentos “felizes”) e minimizam outros (rotina, reflexão, solidão). A memória automatizada produz uma versão editada da vida.
A quantificação do eu
Dispositivos de automonitoramento, como pulseiras de atividade, aplicativos de meditação ou monitores de sono, mostram uma nova forma de externalização tecnológica. Esses sistemas transformam o que entendemos por saúde, produtividade ou equilíbrio.
Um aplicativo como o Headspace, que acompanha a meditação, molda uma forma de introspecção guiada por métricas, metas e progressos quantificáveis. A espiritualidade adota a linguagem da auto-otimização. Da mesma forma, os dispositivos que registram o sono transformam o descanso em uma tarefa a ser melhorada, gerando ansiedade por alcançar um “bom dormir”.
Experiências que antes eram vividas como qualitativas ou pessoais — bem-estar, calma, satisfação — passam a ser lidas como dados que um algoritmo pode analisar. O resultado é uma forma de autorrelação em que “o incalculável se torna irrelevante ou patológico”.
O pensamento em mãos alheias
Os sistemas de inteligência artificial generativa produzem textos, ideias, argumentos. Pela primeira vez na história, as máquinas podem simular de forma convincente processos que considerávamos exclusivamente humanos: criatividade, argumentação, síntese crítica.
Além de gerar texto, os sistemas de IA já participam de decisões que antes exigiam julgamento humano. Algoritmos determinam quem acessa um empréstimo, quem é contratado, quem recebe atendimento médico prioritário. Esses sistemas automatizam o processo seguindo critérios que, por vezes, são incompreensíveis.
Nem sempre são claros para os desenvolvedores, pois muitos algoritmos atuais, especialmente os baseados em aprendizado de máquina, aprendem a partir de grandes volumes de dados sem que suas regras internas sejam projetadas linha por linha. Em vez de seguir instruções explícitas, esses sistemas ajustam seus próprios parâmetros com base em padrões estatísticos. Como resultado, podem chegar a conclusões eficazes, mas difíceis de decompor ou explicar passo a passo.
Isso é conhecido como o problema da “caixa preta”: o sistema fornece respostas, mas nem sempre é possível rastrear com precisão por que tomou uma decisão específica. Até mesmo as equipes técnicas podem desconhecer qual combinação exata de variáveis influenciou mais um resultado. Isso dificulta auditorias, correção de vieses e prestação de contas.
Quando um algoritmo decide sobre a liberdade condicional de alguém com base em dados, não está apenas calculando riscos — está impondo uma ideia concreta de justiça, uma forma particular de definir quais variáveis importam ao decidir o destino de uma pessoa.
A produção algorítmica da sociabilidade
As plataformas de redes sociais representam a ontotecnologia em ação. Facebook, Instagram, TikTok, Twitter determinam o que se torna visível, o que gera engajamento, o que viraliza.
O feed do Facebook mostra o que o algoritmo determinou que maximizará seu tempo na plataforma. O TikTok não apresenta vídeos que lhe interessam, mas conteúdo calculado para gerar respostas neurológicas específicas que prolonguem o uso.
As redes sociais não mediam a sociabilidade — elas a manufaturam segundo parâmetros de otimização que priorizam o engajamento em detrimento da qualidade da interação, a polarização em vez do diálogo, a resposta emocional rápida em lugar da reflexão pausada.
A moral algorítmica
Sistemas de IA que moderam conteúdo, detectam discurso de ódio ou controlam o que é considerado uma interação aceitável impõem uma forma automatizada de moralidade. Eles agem seguindo regras definidas por empresas, programadores ou estruturas legais. O que é considerado correto se ajusta como mais um parâmetro.
As pessoas tendem a se comportar de acordo com o que o sistema permite ou sanciona, não porque refletiram sobre isso, mas porque aprendem a se mover dentro de seus limites.
A polarização como produto
As “câmaras de eco” e a polarização política nas redes sociais são o resultado de sistemas projetados para maximizar a atenção. Conteúdo que gera indignação, surpresa ou confirmação de preconceitos existentes mantém os usuários por mais tempo na plataforma.
Os algoritmos aprendem que conteúdo divisivo gera mais interação do que conteúdo equilibrado. O resultado é a amplificação sistemática de posições extremas e a invisibilização de outras perspectivas. A polarização política não pode ser entendida sem considerar como os sistemas algorítmicos modificaram a “ecologia informacional” na qual as opiniões se formam.
A Internet das Coisas
Os dispositivos da “Internet das Coisas” (IoT) estendem a lógica ontotecnológica ao espaço doméstico. Assistentes virtuais como Alexa ou Google Home, termostatos inteligentes, geladeiras conectadas, sistemas de iluminação automatizada transformam a relação com o espaço habitado.
Uma casa “inteligente” é uma casa que observa, registra e antecipa. Ela aprende padrões de comportamento, horários, preferências de temperatura, hábitos de consumo. Promete eficiência e conforto, mas também produz um “ambiente que conhece o morador melhor do que ele mesmo se conhece”.
A geladeira que recomenda o que comprar com base em nossos hábitos, o termostato que ajusta a temperatura conforme nossas rotinas ou o sistema de segurança que aprende a diferenciar movimentos “normais” dos “suspeitos” fazem parte de um lar inteligente. Juntos, criam um ambiente onde a vida cotidiana se organiza a partir de dados pessoais, como se a casa se tornasse uma extensão de nossa pegada digital.
Biometria e somatização
O reconhecimento facial, as impressões digitais, o ritmo cardíaco ou a voz são lidos por sistemas que não precisam de mediação humana para classificar ou decidir.
Essa forma de leitura automatizada afeta aspectos da vida cotidiana. O acesso a certos serviços, direitos ou formas de mobilidade pode depender do que o sistema registra — ou ignora — ao analisar nossos corpos. Um corpo que funciona como interface.
Dispositivos de saúde e bem-estar não se limitam a medir o que fazemos; também nos dizem como deveríamos viver. Ao recomendar quantos passos dar ou quantas horas dormir, propõem um modelo de corpo ideal baseado em dados. Mas essas recomendações respondem a critérios de eficiência e interesses comerciais, não a decisões pessoais ou formas de vida escolhidas livremente.
A inteligência educadora
Plataformas como Khan Academy, Coursera ou sistemas de tutoria com IA estão substituindo não apenas o professor, mas também o processo pedagógico como experiência dialógica. A ontotecnologia educacional se apresenta como solução para a desigualdade do conhecimento, mas, ainda assim, essa personalização conduz à padronização.
Os algoritmos que personalizam o conteúdo para cada usuário priorizam a eficiência acima da dificuldade ou do esforço. O estudante já não enfrenta o desafio de compreender algo complexo; recebe informações já filtradas, ordenadas e aprovadas. Aprender se transforma, assim, em um processo guiado por recompensas rápidas.
O presente contínuo
A ontotecnologia gera uma experiência do tempo marcada pela imediatez permanente. Notificações, dados em tempo real, ciclos de atualização contínua produzem uma forma de presente expandido, onde o passado se torna inerte e o futuro é calculado algoritmicamente.
Já não projetamos o porvir; o prevemos. O tempo se converte em uma variável gerenciável, e com isso se perde a possibilidade do acontecimento, do inesperado, da interrupção que irrompe e transforma.
A obsolescência existencial
O tempo ontotecnológico é também um tempo que caduca. Versões de software, ciclos de produtos, tendências virais: tudo se torna obsoleto rapidamente. Esse ritmo técnico se impõe sobre os corpos e as vidas. A sensação de estar desatualizado afeta a forma como nos entendemos. Surge uma ansiedade constante por se manter relevante. A obsolescência já não recai apenas sobre os objetos; alcança também os modos de vida.
A ontotecnologia, entendida como essa fusão progressiva entre o ser e os dispositivos que organizam nossa experiência, estende sua lógica de cálculo a cada canto da vida. Apesar de tudo, ainda persiste um excedente que resiste à parametrização. Há dores que não têm causa clínica, vínculos que rejeitam a utilidade, palavras que não se alinham com o sentido previsto — sem que isso se traduza em uma anomalia do sistema.
Yuk Hui propõe que a técnica moderna foi empobrecida por uma lógica uniforme e global, perdendo assim sua riqueza histórica e cultural. Diante dessa homogeneização, ele sugere uma “diversificação da técnica”: uma reapropriação que não se limita ao uso funcional dos dispositivos, mas os insere em formas de vida distintas, enraizadas em saberes e cosmologias diversas. Habitar a tecnologia de outro modo implica abrir espaço para aquilo que nenhum algoritmo pode antecipar ou absorver por completo: o irreductível, o incalculável, o singular.
Günther Anders, em seu diagnóstico precoce, alertou que a técnica avançaria mais rápido do que nossa capacidade de compreendê-la, produzindo uma “dessincronização entre o homem e seu mundo”. Esse descompasso é temporal e existencial. Enquanto o entorno se torna legível para as máquinas, o sujeito fica exposto a uma crescente irrelevância de sua interioridade.
O propósito aqui não é se opor à tecnologia, mas sim preservar o que não pode ser convertido em dado, o que permanece improdutivo, errático, indomável. Ali, nessa zona sem função, persiste algo do mundo que ainda não foi capturado. Presença sem utilidade.
A ontotecnologia não é um destino inevitável, mas tampouco uma ferramenta neutra. É o “território ontológico no qual hoje existimos”. Negá-lo é ingenuidade; aceitá-lo sem crítica, rendição.
É necessária uma nova pedagogia do ser, uma alfabetização ontotécnica. Precisamos aprender a ler os códigos que nos leem, a escrever dentro de sistemas que nos reescrevem, a habitar arquiteturas sem nos tornarmos peças intercambiáveis.
Porque, se não entendermos a ontotecnologia, seremos seus executáveis passivos. E se conseguirmos pensá-la com lucidez, talvez recuperemos algo de nossa capacidade de existir para além do desempenho, do perfilamento e da previsão.
“A geração traída”
Os jovens de hoje não são “nativos digitais” distraídos que não conseguem entender sua realidade. Eles são sobreviventes de um experimento social fracassado. Cresceram vendo seus pais, armados com diplomas universitários e currículos impecáveis, lutando por empregos precários ou se refugiando em trabalhos que odeiam. Viram a promessa do “estude e você vencerá” desmoronar diante de seus olhos.
Quando um professor fala sobre a importância da criatividade em uma sala de aula onde tudo é padronizado, quando pregam sobre pensamento crítico enquanto proíbem questionar o sistema, quando prometem preparação para o futuro com métodos do passado remoto, eles percebem a mentira.
Quando a elite se salva sozinha
Diante do colapso da educação, famílias com recursos encontraram múltiplas saídas privilegiadas: homeschooling, escolas Waldorf, metodologia Montessori e uma galáxia de alternativas pedagógicas que prometem o que o sistema tradicional não consegue entregar. Mas vamos analisar essas “soluções” sem romantizações.
Metodologias como Waldorf ou Montessori, com propostas como respeito aos ritmos individuais, aprendizado pela experiência e integração das artes, continuam sendo privilégios para poucos.
O homeschooling, como é praticado hoje, exige que pelo menos um dos pais dedique tempo integral à educação, acesso a recursos diversificados e capacidade de pagar tutores especializados. É a versão educacional dos condomínios fechados.
Em todos esses casos, o denominador comum é que transformam a educação em um produto diferenciado: hoje, acessá-las requer investimento financeiro e de tempo que nem todas as famílias podem arcar. Assim, enquanto uma minoria obtém ambientes inovadores e conectados com a vida real, o sistema público se deteriora, aprofundando a desigualdade e deixando muitos jovens sem alternativas.
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O absurdo de exigir sem condições
Enquanto se exalta a educação como caminho de mobilidade social, pouco se reconhece que milhões de adolescentes já não habitam essa promessa. Em suas vidas, a escola compete com urgências vitais que não cabem nos discursos oficiais nem nas estatísticas ministeriais.
Na América Latina e no Caribe, mais de 8 milhões de crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil, segundo estimativas recentes da OIT e UNICEF. A maioria atua em setores informais, sem proteção legal, expostos a riscos físicos, emocionais e sociais.
Mas além dos números, está a realidade cotidiana: muitos cuidam de irmãos menores, ajudam no sustento da família ou tentam sobreviver em ambientes marcados por pobreza estrutural, violência e falta de acesso a serviços básicos.
Nesse contexto, como exigir desempenho acadêmico convencional se nem condições mínimas de vida estão garantidas? O debate educacional não pode ignorar essa desigualdade de base.
Uma forma de revolução
Enquanto pais e educadores debatem metodologias e currículos, os jovens estão se educando fora do sistema formal. Aprendem design gráfico no YouTube, programação em plataformas interativas, negócios criando conteúdo no TikTok, habilidades sociais navegando em ecossistemas digitais.
Essa educação carece de estrutura e bases teóricas sólidas, corre risco de viés informacional. Mas tem algo que o sistema formal perdeu há décadas: relevância imediata e aplicação prática.
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Um jovem que aprende a programar porque quer criar um app tem uma motivação que nenhuma aula obrigatória de matemática pode gerar.
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Uma adolescente que abre um canal no YouTube sobre história desenvolve habilidades de comunicação, pesquisa e gestão muito além do que aprenderia em uma sala de aula tradicional.
A neurodivergência
A explosão de diagnósticos de TDAH, ansiedade e outros desafios neurodivergentes nas escolas é o sintoma mais claro de que nosso modelo educacional foi projetado para um tipo de cérebro que talvez nunca tenha existido em massa — e que definitivamente não corresponde às realidades neurológicas atuais.
Pedir que um adolescente fique imóvel e em silêncio por horas, processando informações de forma linear, é como pedir a um peixe que voe. O problema não está no peixe, mas no ambiente radicalmente inadequado.
Preferimos medicar os jovens a questionar um sistema que os violenta sistematicamente.
A inteligência artificial
A chegada da IA expôs a pobreza intelectual do nosso sistema educacional. Se o ChatGPT escreve ensaios mais coerentes que muitos graduados, resolve problemas matemáticos complexos em segundos e gera códigos funcionais a partir de descrições simples, qual o valor de uma educação baseada em memorização e repetição?
Mas, em vez de aproveitar a oportunidade para redefinir o que é educar no século XXI, a resposta institucional foi o pânico e a proibição.
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Universidades criam detectores de IA para “proteger a integridade acadêmica”, como se o problema fosse a ferramenta, e não a irrelevância das tarefas que ela consegue realizar sozinha.
A IA deveria ser o catalisador de uma revolução educacional, colocando ênfase na criatividade, pensamento crítico e resolução de problemas reais. Em vez disso, a usamos como desculpa para nos agarrar a paradigmas obsoletos.
A integração da tecnologia como fachada
A inclusão de tecnologia nas salas de aula foi um dos fracassos mais espetaculares das últimas décadas. Gastamos fortunas em lousas digitais, tablets e plataformas que, na maioria dos casos, apenas digitalizam métodos ultrapassados.
Usar um tablet para fazer exercícios repetitivos não é inovação. Ter internet na sala e só usá-la para buscar respostas prontas não é aproveitamento tecnológico — é desperdício sofisticado.
A violência da sala de aula
Há uma violência sutil na experiência educacional tradicional que raramente é nomeada:
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Forçar corpos em desenvolvimento a ficarem imóveis por horas.
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Impor ritmos uniformes a mentes diversas.
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Avaliar a inteligência humana com métricas feitas para máquinas.
Mas a pior violência é a destruição da curiosidade natural. Crianças chegam à escola cheias de perguntas. Após anos de “feche o livro e copie do quadro”, essas perguntas morrem. No lugar, resta uma capacidade domesticada de reproduzir respostas “corretas”.
Essa violência serve a um sistema que precisa de trabalhadores obedientes, não pensadores críticos; consumidores previsíveis, não cidadãos empoderados.
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O corpo esquecido
Ignoramos as necessidades corporais do aprendizado. Sabemos há décadas que movimento é fundamental para o desenvolvimento cognitivo, que ritmos circadianos afetam a atenção, que a postura influencia o humor. Ainda assim, mantemos:
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Salas sem janelas.
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Horários que violam a biologia adolescente.
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Mobiliário que prega a imobilidade.
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Proibição do brincar e do movimento livre.
Essa negação do corpo vem de uma visão cartesiana que separa mente e corpo, privilegiando o mental como superior. Mas a neurociência já derrubou essa separação: aprendemos com todo o corpo. Negar isso é sabotar a educação desde sua base.
Os professores: vítimas e cúmplices
Os docentes ocupam a posição mais paradoxal do sistema: são suas vítimas mais diretas e seus executores mais visíveis.
A maioria entra na profissão com ideais de transformação, mas o sistema os converte em burocratas de um aparato que desvirtua sua motivação original. Precisam cumprir currículos rígidos, preparar alunos para provas padronizadas, preencher formulários infinitos.
Ao mesmo tempo, assumem funções que vão muito além da educação: são psicólogos, assistentes sociais, mediadores de conflitos — tudo com salários indignos e prestígio social em queda livre.
Quando a escola exige o que o sistema não garante
O sistema econômico exige que ambos os pais trabalhem em tempo integral (quando os há) para sustentar um padrão básico de vida. Famílias monoparentais, avós sobrecarregados, tios com jornadas duplas: todos cuidam como podem, em um contexto que pune o cuidado e premia a produtividade.
Nesse cenário, as escolas exigem participação ativa das famílias na educação, como se todas partissem das mesmas condições materiais e emocionais. Dizem que “a educação começa em casa”, mas omitem que muitas casas não têm o que o sistema esvaziou.
Pedir compromisso escolar em meio à pobreza, informalidade, cansaço ou fome é ignorar que não há aprendizado possível quando a vida é uma questão de sobrevivência.
O que realmente importa aprender?
Já ficou claro que memorizar dados vazios não prepara para o mundo atual. Mas não basta criticar — é preciso agir.
Onde estão as disciplinas sobre:
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Nutrição (não só biológica, mas emocional e social)?
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Educação financeira (como funcionam criptomoedas, economia descentralizada)?
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Geopolítica sem filtros ideológicos?
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Como ler narrativas das redes sociais, distinguir fato de opinião?
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Lidar com estresse e construir relações saudáveis?
Precisamos de uma educação que forme pessoas autônomas, capazes de pensar, adaptar-se e agir com critério.
China: educação para a vida real
Enquanto o Ocidente debate reformas que nunca chegam, a China está reconfigurando seu modelo educacional. Desde 2022, o Ministério da Educação incorporou a “educação para a vida” como parte do ensino obrigatório:
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Alunos do fundamental e médio têm aulas semanais de tarefas domésticas (cozinhar, limpar, cuidar de animais, cultivar hortas) junto com tecnologia avançada (impressão 3D, corte a laser).
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Em jardins de infância como os de Anji County, crianças constroem suas próprias cozinhas e preparam alimentos, desenvolvendo habilidades motoras, responsabilidade e conexão com o que consomem.
A China também usa IA para personalizar ritmos de aprendizado, corrigir exercícios em tempo real e direcionar alunos para áreas que precisam de reforço. Assim, a tecnologia não é um enfeite, mas uma ferramenta que libera o professor para o que realmente importa: o lado criativo e relacional.
Universidade vs. autodidatismo
A transição do colégio para a universidade nem sempre significa avanço. Enquanto o mercado exige habilidades transversais e pensamento crítico, muitas faculdades continuam presas a modelos enciclopédicos e ultrapassados.
Um semestre pode custar vários salários mínimos, financiado por dívidas estudantis ou trabalhos paralelos. Isso levou muitos jovens ao autodidatismo:
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Articulam conhecimentos diversos na prática.
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Constroem redes colaborativas.
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Libertam-se dos dogmas acadêmicos.
Apesar de ser uma formação mais significativa, esse caminho ainda não recebe o reconhecimento que merece. A UNESCO estima que menos de 15% dos títulos obtidos fora da Europa e América do Norte são validados em outros países — a “migração do saber” esbarra em barreiras burocráticas, condenando muitos ao subemprego.
O conhecimento como propósito
Há uma questão mais profunda: a necessidade de um saber que não seja só instrumento, mas também sentido. Quando o conhecimento é justificado apenas por seu valor de troca, perdemos a alma do aprendizado.
Precisamos não só de ferramentas para sobreviver, mas de razões para viver. Uma educação centrada no sentido devolve ao conhecimento sua dimensão existencial:
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Saber não para competir, mas para compreender.
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Estudar filosofia, arte, literatura, história — não como luxo, mas como bússola em um mundo técnico e desumanizado.
Um jovem que lê Dostoiévski, ouve Nina Simone ou reflete sobre ética na tecnologia descobre que o conhecimento não se esgota na utilidade: ele pode curar, questionar, unir, resistir.
A inércia como inimiga
O maior obstáculo para a transformação educacional não é falta de conhecimento ou recursos. É a inércia de instituições que perderam a capacidade de autocrítica e renovação.
Essa inércia é alimentada por:
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Burocracias que priorizam a sobrevivência institucional sobre a missão educativa.
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Sindicatos que confundem defesa de direitos com resistência à mudança.
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Pais que preferem o conhecido, mesmo que disfuncional.
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Políticos com medo do custo eleitoral de reformas profundas.
Internalizamos a ideia de que a educação formal é intrinsecamente valiosa, independente de seus resultados. Questionar o sistema é visto como atacar a educação, quando na verdade pode ser a única forma de salvá-la.
A revolução necessária
As mudanças necessárias vão além de ajustes metodológicos ou atualizações tecnológicas. Exigem reimaginar completamente o que significa educar no século XXI.
Estamos em um momento único. Crises climáticas, revoluções tecnológicas e polarização social criaram uma janela para transformações antes impensáveis.
Este não é o momento para reformas graduais. É hora de uma revolução educacional que coloque os jovens — e não as instituições — no centro.
Essa revolução não virá de cima. Ministérios, universidades e burocracias escolares têm muito a perder. O cambio virá:
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Das famílias que priorizam aprendizado real sobre notas.
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Dos professores que personalizam seu ensino apesar das regras.
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Dos jovens que se recusam a aceitar uma educação irrelevante.
A revolução educacional não é um evento futuro. É uma escolha presente.
É hora de decidir: seremos cúmplices da grande traição ou arquitetos da grande transformação?
A Dupla Moral Consciente
A forma mais visível de dupla moral é aquela que se pratica com plena consciência. Neste caso, a pessoa sabe perfeitamente que está aplicando critérios diferentes conforme sua conveniência, mas justifica isso através dos seguintes mecanismos:
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A excepcionalidade: “Meu caso é diferente, tem circunstâncias especiais.”
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A relativização: “O que eu faço não é tão grave comparado ao que os outros fazem.”
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A compensação: “Em outros aspectos sou moralmente irrepreensível, então posso me permitir esta exceção.”
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A redefinição: “Não estou fazendo exatamente o mesmo que critico, há nuances.”
O filósofo Jean-Paul Sartre a chamou de “má-fé” em sua obra “O Ser e o Nada”. A má-fé implica um autoengano voluntário, um ocultamento de verdades incômodas para si mesmo.
“O homem que se envolve na má-fé esconde uma verdade desagradável ou apresenta como verdade um erro agradável. A má-fé é, portanto, o uso da liberdade para fugir da própria liberdade.”
No âmbito político, a dupla moral consciente é um padrão mantido na tomada de decisões públicas. Governos e líderes promovem valores como transparência, autodeterminação dos povos ou direitos humanos, mas frequentemente agem em sentido contrário quando esses princípios atrapalham seus interesses. A história recente e os relatórios de organismos internacionais mostram como é comum restringir informações sob argumentos de “segurança nacional” ou adotar posições morais seletivas diante de crises, dependendo do país envolvido.
O sociólogo Pierre Bourdieu desenvolveu o conceito de “violência simbólica” para explicar como as classes dominantes fazem com que seus interesses particulares sejam percebidos como valores universais, estabelecendo assim uma dupla moral em que certos grupos podem violar impunemente normas que outros devem seguir rigorosamente.
Em nível individual, as manifestações da dupla moral são recorrentes no cotidiano. Pense em quem condena publicamente certos vícios, mas defende veementemente o consumo de álcool, ignorando estudos que demonstram que essa substância legal pode causar danos equivalentes ou até maiores do que algumas drogas ilícitas.
Isso mostra como os julgamentos morais são influenciados por construções sociais e históricas, mais do que por avaliações objetivas de dano.
O Cálculo da Conveniência
O que caracteriza essa forma de dupla moral é o cálculo. As pessoas que a praticam conscientemente estão fazendo uma análise de custo-benefício: é mais fácil apontar o erro dos outros do que se corrigir, mais cômodo acusar do que assumir, mais vantajoso julgar do que ser julgado. A dupla moral consciente se sustenta sobre uma lógica de autoproteção do eu ou do grupo.
Friedrich Nietzsche foi um dos primeiros a afirmar que os sistemas morais dominantes não são expressões desinteressadas de verdades universais, mas instrumentos de poder.
“A moral é simplesmente uma interpretação de certos fenômenos, mais precisamente, uma má interpretação.” (Nietzsche)
A pretensão de universalidade moral sempre esconde interesses particulares, o que explica por que quem proclama princípios absolutos costuma aplicá-los de forma seletiva.
Não é que as pessoas ignorem sua incoerência – pelo contrário, elas a percebem, mas a minimizam, a disfarçam ou a justificam com narrativas que lhes permitem manter intacta sua autoimagem positiva.
Quando alguém mantém ao mesmo tempo duas crenças ou pensamentos que não se encaixam, surge o que a psicologia chama de dissonância cognitiva. Para aliviar esse desconforto, é comum que a pessoa modifique uma das ideias, ajuste ambas ou incorpore uma nova que traga uma sensação de coerência.
A Dupla Moral Inconsciente
A dupla moral inconsciente é aquela forma de avaliar o mundo que foi internalizada sem questionamento, transmitida pela família, cultura, religião, mídia e outras instituições sociais.
Cegueira Seletiva
Uma pessoa pode, por exemplo, se indignar com a opressão que mulheres sofrem em outras culturas, mas não perceber como problemáticas as pressões estéticas que as mulheres enfrentam em seu próprio meio. Pode rejeitar o racismo explícito, mas continuar reproduzindo microagressões baseadas na crença inconsciente de que certas pessoas “não se encaixam” ou “não estão preparadas” para determinados espaços.
Esses preconceitos normalizados surgem de raízes culturais. Outro exemplo são aqueles que criticam os limites que certas tradições religiosas impõem à conduta sexual, ignorando como sua própria tradição impõe padrões igualmente rígidos de beleza, sucesso ou comportamento. A diferença é que os próprios esquemas culturais são vistos como “neutros” ou “naturais”, enquanto os alheios são percebidos como “imposições” ou “restrições”.
O mais perigoso da dupla moral inconsciente é justamente que ela é considerada neutra ou inocente. Quem a pratica acredita estar aplicando critérios universais e justos, quando na verdade está reproduzindo desigualdades.
O Ecologismo de Mercado
Existem movimentos que pregam uma vida mais sustentável e comunitária, mas acabam consumindo produtos de grandes corporações que contradizem seus discursos iniciais. Desde calçados “ecológicos” fabricados em condições trabalhistas questionáveis até festivais de música “alternativa” patrocinados por marcas de bebidas energéticas ou tecnológicas, vemos uma constante cooptação do idealismo pelas mesmas forças de mercado que são criticadas.
O movimento de alimentação orgânica começou como uma crítica ao sistema alimentar industrial. Mas a indústria adotou seletivamente rótulos “naturais” ou “ecológicos” sem mudar seus métodos de produção. Muitos consumidores pagam mais caro por produtos que oferecem uma ilusão de coerência ética, sem questionar as contradições do sistema que supostamente rejeitam.
Essa dupla moral pode ser consciente (“Sei que não sou perfeitamente coerente, mas é melhor do que nada”) ou inconsciente (“Estou fazendo o certo ao comprar produtos sustentáveis”). Em ambos os casos, demonstra as dificuldades de manter princípios éticos em um sistema econômico que constantemente absorbe e neutraliza críticas, transformando-as em novos nichos de mercado.
O Ativismo Digital e as Marcas Pessoais
Vemos influenciadores que promovem mensagens de justiça social, mas ao mesmo tempo monetizam seus discursos com patrocínios de empresas cujas práticas trabalhistas ou ambientais são questionáveis. A autenticidade se torna um ativo comercial.
Esse ativismo vira uma marca pessoal, uma forma de distinção que pode ou não corresponder a práticas coerentes. A indignação vira espetáculo: compartilham-se causas nobres enquanto se age com agressividade nos comentários, exige-se empatia para certos grupos enquanto se desumaniza quem pensa diferente.
O resultado é uma sociedade de aparências morais, onde importa mais parecer virtuoso do que ser coerente, mais acumular capital moral do que transformar as estruturas que geram injustiça.
A Dupla Moral Inconsciente no Comportamento Cotidiano
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Privacidade digital e exposição em redes sociais: Muitos se preocupam com a privacidade de dados e criticam grandes empresas por coletar informações pessoais, mas compartilham voluntariamente aspectos íntimos nas redes. Essa contradição passa despercebida porque a exposição digital foi normalizada como parte do “social”, enquanto outras formas são vistas como invasivas.
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Consumo e crítica ao capitalismo: Pessoas criticam o sistema capitalista e a exploração laboral, mas consomem produtos de luxo, tecnologia fabricada em condições precárias ou serviços de empresas monopolistas.
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Apropriação cultural: Promove-se diversidade e respeito a outras tradições, mas adotam-se elementos culturais alheios sem entender seu significado, trivializando-os ou lucrando com eles.
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Discriminação por idade no trabalho: Pessoas progressistas que combatem a discriminação podem ter vieses contra profissionais mais velhos em áreas tecnológicas ou jovens em cargos de liderança.
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Saúde mental: Fala-se sobre a importância da saúde mental, mas ainda há julgamentos contra comportamentos derivados de transtornos (ex.: chamar alguém com depressão de “fraco”).
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Liberdade de expressão seletiva: Defende-se a liberdade de expressão quando beneficia as próprias opiniões, mas questiona-se quando favorece discursos opostos.
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Exigência educativa x precariedade laboral: Pais pressionam jovens a se endividarem por diplomas, mas normalizam um mercado de trabalho que os explora.
Quando a Moral Vira Identidade
A dupla moral persiste porque está ligada à nossa identidade. Mudar uma convicção moral significa revisar nossa autoimagem – admitir que talvez fomos injustos, arrogantes ou mal-informados por anos. Nem todos estão dispostos a encarar esse espelho incômodo.
Posições morais também se mantêm pelo vínculo emocional com uma comunidade ideológica. Criticar as incoerências do próprio grupo é visto como traição, enquanto apontar as do grupo rival confirma a “superioridade moral” própria.
Essa dinâmica explica por que as pessoas detectam facilmente a dupla moral nos adversários, mas são cegas a padrões similares em seu próprio lado. O viés de confirmação faz com que absorvamos informações que reforçam nossas crenças e descartemos as que as desafiam.
A Narrativa do ‘Eu Bom’
Para muitos, é mais fácil manter uma narrativa simplista: “Eu sou dos bons.”
Essa autoindulgência bloqueia a autocrítica necessária para identificar e corrigir contradições. Se já nos vemos como moralmente superiores, por que examinar nossos pontos cegos?
Ninguém está totalmente livre da dupla moral. Nossos vieses, limitações cognitivas e motivações inconscientes garantem que, em algum momento, todos sejamos inconsistentes em nossos julgamentos.
O primeiro passo para uma maior coerência é abandonar a ilusão de perfeição moral. Reconhecer que todos praticamos algum grau de dupla moral abre espaço para a autorreflexão.
Estratégias para Reduzir a Dupla Moral
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Inversão de papéis: “Como eu julgaria essa situação se estivesse no lugar do outro?”
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Buscar contra-argumentos: Expor-se a perspectivas diferentes das suas.
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Cultivar humildade epistêmica: Admitir que podemos estar errados.
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Princípio da caridade interpretativa: Tentar entender as posições alheias em sua melhor versão.
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Questionar automatismos morais: Refletir sobre a origem de julgamentos instantâneos.
Não há progresso moral sem reconhecer contradições, nem ética sem autocrítica constante.
Eliminar a dupla moral talvez seja impossível, mas podemos criar condições individuais e sociais para identificá-la, questioná-la e reduzi-la progressivamente.
“Fome de sentido”
Um ensaio sobre o esvaziamento simbólico da alimentação atual e a necessidade de recuperar o sentido cultural e filosófico do que comemos.
Esses ângulos, embora necessários, eclipsaram uma dimensão igualmente relevante: o que levamos à boca e nossa forma de habitar o mundo.
A produção e preparação dos alimentos moldam o tecido cultural dos povos. Em cada grão, em cada técnica de cocção, esconde-se uma história milenar que se conecta com a terra e suas raízes. Os maias não apenas cultivavam milho; veneravam-no como origem da vida, incorporando-o em seus mitos de criação, nos quais os deuses moldaram os humanos com massa de milho. Seu calendário agrícola ditava os tempos de plantio e colheita, alinhando ciclos terrestres com movimentos celestes.
Onde as tradições culinárias cedem ao industrial, a capacidade crítica se enfraquece. Uma alimentação separada dos ciclos naturais, do contato com a terra, dos rituais e do tempo, modifica a própria estrutura da nossa consciência.
Os alimentos guardam narrativas. Sua industrialização implica uma metamorfose de significados. Ao longo da história, definiram-se cosmogonias e expressões culturais que fortalecem a identidade e os laços sociais.
O despojo dessas práticas deu lugar a outras formas de resistência. Os cantos de trabalho nas plantações de algodão e cana-de-açúcar nas Américas deram origem ao blues e ao son. A música ergueu-se como resposta ao sofrimento de corpos forçados a abandonar suas terras para servir monocultivos impostos. Da dor da cana nasceu a bomba portorriquenha; do café colombiano, o bambuco; dos campos de arroz no Japão, canções cerimoniais que marcavam o ritmo do plantio.
A comida rápida transforma-se em método de compreensão. Digerimos informações como alimentos: apressadamente, sem raízes, sem esforço. O pensamento reflexivo e analítico exige pausa, espera, absorção, como um caldo em fogo lento ou uma fermentação natural. Quando nossos alimentos perdem temporalidade, nosso olhar sobre o entorno também se torna impaciente e superficial.
A cruel paradoxo de nossa época: regiões com extraordinária riqueza natural sofrem as piores formas de má nutrição. No Brasil, enquanto a Amazônia abriga milhares de frutas silvestres nutritivas, moradores de periferias consomem biscoitos ultraprocessados importados. No México, berço do milho com milhares de variedades nativas, crianças desjejuam cereais açucarados feitos de milho transgênico. Comunidades na Indonésia, cercadas por oceanos abundantes, compram atum enlatado produzido a milhares de quilômetros.
A culinária tradicional, mesmo na escassez, preservava saberes ecológicos hoje em retirada. Quando os sabores da infância desaparecem, dissipam-se também as referências emocionais e sensoriais que moldavam nosso modo de estar no mundo.
Preparar alimentos com ingredientes locais era um caminho para ensinar ecologia, medicina, astronomia, ética. Quando a indústria assume esse lugar, quando cozinhar torna-se tarefa terceirizada, entregamos também parcelas de discernimento. Já não decidimos o que comemos; ignoramos o que contém.
Em sociedades onde mercados locais e cerimônias culinárias se extinguem, o deterioro mental propaga-se do individual ao coletivo. O perdido vai além do sabor: desmorona-se a lógica que sustentava formas de organização, economia e transmissão da memória.
Em países tropicais com terras férteis, o natural torna-se privilégio. Uma banana orgânica custa mais que um pacote de biscoitos industriais. O abacaxi cultivado sem químicos é inacessível às famílias locais enquanto é exportado. Enquanto isso, outras nações exigem padrões mais rigorosos: a Finlândia proíbe aditivos que inundam produtos latino-americanos; o Japão impõe limites estritos a resíduos de pesticidas considerados aceitáveis em outros lugares.
No México, onde o nixtamal era base das tortilhas e da cultura, hoje predominam cereais ultraprocessados. O desaparecimento de variedades nativas de milho arrasta consigo saberes agrícolas e economias locais. Esse deslocamento resulta de políticas voltadas ao monocultivo e de um discurso que glorificou o moderno em detrimento do próprio.
Monocultivos redesenharam a geografia mundial a serviço de interesses alheios. Em Honduras, a United Fruit Company transformou ecossistemas diversos em vastas plantações de banana, gerando dependência econômica que cunhou o termo “república das bananas”. Na Indonésia, florestas tornam-se plantações de palma para atender à demanda ocidental por alimentos processados. Esses monocultivos devastam a biodiversidade, apagam cantos de colheita, medicinas tradicionais e festivais sazonais.
Como disse Laura Esquivel:
“Muitos foram desmamados antes da hora, e por isso buscam na vida algo que os alimente de verdade”.
Esse padrão repete-se em múltiplas geografias: na Coreia, o tteokbokki de rua sucumbe a franquias estrangeiras; na Índia, o dal caseiro cede a macarrões instantâneos; na Itália, a cucina povera — sábia no uso de ingredientes simples — transforma-se em massa pré-cozida.
Nancy Turner, etnobotânica canadense, documentou que povos indígenas da costa noroeste da América do Norte utilizaram mais de 500 espécies vegetais para alimentação, saúde e cultura. Esse conhecimento, transmitido oralmente, hoje está ameaçado pela adoção de dietas importadas e pelo abandono de práticas ancestrais.
Em países ricos em recursos naturais, supermercados exibem prateleiras cheias de produtos embalados cujos ingredientes crescem a poucos quilômetros. A matéria-prima percorre milhares de quilômetros, é industrializada e retorna irreconhecível, com rótulos onde aditivos superam os alimentos reais. O que cresce perto torna-se inacessível ao ser reembalado como “premium”.
Quando alimentar-se torna-se ato solitário e automático, enfraquecem-se os laços de cuidado mútuo. Uma sociedade que abandona seus fogões renuncia a questionar como deseja viver. Consome sem discernimento: comida, ideias, notícias, corpos.
Essa pobreza transcende o mental e chega ao econômico. Economias tradicionais de subsistência mostram maior resiliência a crises ambientais que monocultivos.
Submetidas a produtos importados e sementes patenteadas, as comunidades veem sua liberdade decisória minguar. Gestar-se um colonialismo alicerçado na dependência alimentar, que começa no estômago e culmina na mente.
Regulamentos sanitários operam com duplo padrão: rigorosos em nações desenvolvidas, lenientes em países biodiversos. O rejeitado por sistemas europeus encontra mercado na América Latina ou África. Comunidades que produzem os melhores cafés ou cacaus do mundo consomem o pior: bebidas açucaradas, farinhas refinadas, óleos hidrogenados. Seus paladares, educados por gerações para discernir sutilezas de sabores naturais, são bombardeados por realçadores artificiais que entorpecem a sensibilidade.
A nutrição não deve divorciar-se da cultura, nem a saúde da autonomia, nem o alimento da consciência. O que comemos molda nossa compreensão e delimita o que somos capazes de conceber. A dieta social não consiste apenas em ingredientes; é feita de decisões históricas, balanças de poder e valores compartilhados.
A iniciativa Slow Food documentou mais de 5.000 produtos tradicionais à beira da extinção, cada um portador de sabedoria ecológica. Em tempos que exigem olhar crítico, o primeiro passo não é ler outro artigo sobre o problema, mas voltar ao fogo, semear de novo, redescobrir o que verdadeiramente alimenta a alma.
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